Antigamente — e haja antigamente — nós, os meninos da rua de cima, tínhamos uma convivência pacífica com o Seu Adriano, nosso vizinho: ele não nos incomodava e nós não o incomodávamos. O seu Adriano era um velho aposentado, de cara fechada, ranzinza, e vivia de eterno mau humor. Nunca o víramos esboçar um único sorriso. A vizinhança também não gostava dele; de poucas palavras, tinha fama de sistemático e encrenqueiro. Tomava conta de um lote enorme, em frente à sua casa, onde tinha um produtivo e bem cuidado pomar, com inúmeras árvores frutíferas, e em especial um coqueiro ouricuri, que dava uns coquinhos avermelhados que eram o nosso sonho de consumo. Ele sabia que pensávamos invadir os seus domínios e, por isso, nos vigiava 24 horas por dia; como aposentado, sabia de todas as nossas traquinagens, mas estas não o atingiam. Quando passávamos por ele na rua, e por não ter o que reclamar, soltava um muxoxo: — HUUMMM... E nós, por não termos nada a reclamar dele, ficávamos quietos, na paz armada, mas dávamos o troco: — HUUMMM... Um belo dia, a nossa trégua foi rompida. Jogávamos futebol no campinho do Grupo, que, apesar de ser área de serventia deste, não era murado. O gol do campinho dava para o passeio da rua de cima. E justamente nessa hora o Seu Adriano descia, de cara amarrada, pelo passeio. O Bebinho, na entrada da pequena área, deu um violento chute na bola em direção ao gol. Errou o gol, mas acertou o Seu Adriano, meio de lado. Este, pego de surpresa, saiu cambaleando, catando cavaco pelo passeio. Imaginamos que a bolada deve ter doído, pois a bola era daquelas de borracha vermelha, que “queimava” a pele. O Bebinho até pensou em pedir desculpas, mas ele soltou somente um muxoxo, como sempre: — HUUMMM... E nós, com culpa no cartório, nada respondemos. Na hora, não ficamos sabendo se ele ficou sentido, pois não havia se manifestado, e tudo ficou por isso mesmo. Contudo, na semana seguinte, notamos que a nossa trégua tinha sido rompida. Ao cruzar com qualquer um de nós pela rua, ele passou a rosnar, em alto e bom som: — MOLEQUE MALCRIADO ... E nós, moleques malcriados, daí por diante, não deixamos por menos: — VELHO RANHETA!
Do livro “Só Mesmo em Betim...” - 2ª edição -
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