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Foto do escritorConsolacao Resende

Como foi o pecado do Cristo**

Sexta-feira da Paixão, dia da Procissão do Enterro. A Cidade, com suas ruas de terra ou calçadas com pedras tipo pé-de-moleque, estava apinhada — fiéis vieram até dos grotões, a cavalo, para participar da Paixão de Cristo, encenada ao vivo, com realismo impressionante, talvez reflexo dos belos figurinos e figurantes.

Como acontecia todos os anos, o papel de Cristo era reservado a Zé do “Nhô”, com sua longa barba e cabelos compridos. Era um tipo popular da Cidade, meio doido e desparafusado, mas os nativos e o padre Ligório gostavam de dar-lhe esse papel, pois, além de ele gostar, a cruz era pesada e tinha-se de atravessar praticamente toda a Cidade, de uma paróquia na periferia à Matriz, no alto do morro, por caminhos desconfortáveis. Era um papel exaustivo, e ele realmente suava em bicas, dando maior verossimilhança à encenação. O papel do soldado chicoteador era dado a outro tipo popular, Zé do Noca, também meio doido e desparafusado, mas “amigo de gole” do Zé do “Nhô”. Em suma, os dois se entendiam.

A procissão já tinha se iniciado, e no meio do itinerário Zé do “Nhô”, suando literalmente como um condenado, pedia:

— Água. Estou com sede!

E a boa Samaritana, devidamente paramenta-da, dava-lhe um gole de água. O soldado chicoteador também pedia:

— Água. Também estou com sede!

E tomava dois ou três goles, sofregamente.

Mas havia um detalhe: a água servida aos dois, por exigência deles, não era realmente água, e sim água que passarinho não bebe, branquinha, da boa, rigorosamente escolhida durante todo o ano li-túrgico. O padre Ligório sabia disso e fazia vistas grossas, dada a tradição da participação dos dois amigos e também porque não havia muitos candidatos aos papéis por eles encenados.

E a procissão ia se-guindo. O soldado, com um chicote de verdade, de couro, ia martirizando o “Cristo”. E ele reclamando:

— Pô. Bate devagar. Você está me machucando!

O calor estava intenso. Novamente o Cristo pediu:

— Mais água. Estou com muita sede!

E bebia mais um golinho. O soldado, também com sede, bebia mais uns dois ou três goles. E o Cristo não parava de reclamar:

— Filho-da-mãe, você está batendo com força!

As beatas, horrorizadas, cantavam os hinos cada vez mais altos, para abafar os impropérios. Estavam quase chegando ao local da crucificação, e o Cristo pedia mais água:

— Mais água. Que calor!

Toma mais um golinho, e o soldado mais dois ou três.

Em dado momento, o soldado, cada vez mais inspirado, desceu o chicote com força total e ela bateu nas costas do Cristo com estalido, deixando vários vergões. O Cristo, então, não agüentou: largou a cruz, tomou o chicote do soldado e gritou, em alto e bom som:

— Seu f. d. p.. Quem vai bater agora sou eu!

E desceram os dois correndo em desabalada carreira pelas poeirentas ruas da Cidade — o soldado à frente e o Cristo atrás, chicoteando-o e cantando a pedra noventa. Dizem que foi a primeira vez que o Cristo não per-doou ao soldado.

E o padre Ligório, por vias das dúvidas, está à procura de dois novos atores...


*Médico ortopedista e traumatologista

**Do livro “Só mesmo em Betim II... e outras avenças”. No prelo.


Dr. Eduardo Amaral Gomes

Escritor e médico

Causos de Betim

Histórias verídicas





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